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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013


EDUCAÇÃO E AFETIVIDADE EM PAULO FREIRE: PEDAGOGIA DA AUTONOMIA
Prof. Dr. Agostinho Mario Dalla Vecchia

RESUMO:
Este trabalho tem como tarefa analisar e destacar o papel da afetividade no processo educativo e na construção do conhecimento, na obra Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire. É uma tarefa de valorização da perspectiva biocêntrica na educação freireana, particularmente do papel de destaque que ocupa a afetividade no processo vivo de construção de uma educação engajada, politizada, ética e, portanto, critica. Acompanhamos cada passo desse livro de sabedoria para perceber e explicitar a realidade afetiva que permeia todo o trabalho de Paulo Freire nesta abordagem. Na próxima edição publicaremos a segunda parte deste trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Afetividade, Educação, Autonomia.
INTRODUÇÃO

Este ensaio é um caminhar lado a lado da reflexão de Freire identificando, em nossa ótica, a configuração do seu movimento afetivo na obra Pedagogia da Autonomia.

Ao ler esta obra chama-nos atenção o fato de ela estar permeada pela afetividade nas suas dimensões de cuidado, qualificação, interesse, empatia, amorosidade, amizade, amor indiferenciado, amor diferenciado, promoção, nutrição, proteção, vínculo e todo o desdobramento ético e estético decorrente da experiência cara-a-cara com o educando, no processo educativo, na promoção do potencial humano, do potencial crítico, político e criativo existencial do educando.

A nossa abordagem vai traçando um caminho orientado pelo movimento afetivo que atravessa a teoria e prática pedagógica de Paulo Freire na construção da Pedagogia da Autonomia. A ética e a estética é a vivência mesma dessa afetividade nos caminhos da ação pedagógica.

No prefácio de Pedagogia da Autonomia, Édina Castro de Oliveira, afirma que a obra trata de uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando.
E um saber, como os demais, que demanda exercício permanente do educador. “É a convivência amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca-os a se assumirem enquanto sujeitos sócio-histórico-culturais do ato de conhecer, é que ele pode falar do respeito à dignidade e autonomia do educando. [...] A competência técnica científica e o rigor de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas. Essa postura ajuda a construir o ambiente favorável à construção do conhecimento onde o medo do professor e o mito que se cria em torno de sua pessoa vão sendo desvelados” (OLIVEIRA, Pedagogia da Autonomia, pág 11).

O ideário neoliberal incorporou a categoria da autono-mia. Esta ideologia, na prática pedagógica do sistema, incentiva o individualismo e a competição. Paulo Freire anuncia a solidarie-dade como forma de luta capaz de promover e instaurar a “ética universal do ser humano”, o que vai permear também o processo educativo.

Nas “primeiras palavras” após anunciar a temática central do livro: a formação docente e a reflexão da prática educa-tivo-progressiva em favor da autonomia dos educandos, Paulo Freire ressalta que formar é muito mais que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas. Seu ponto de vista é o dos condenados da terra, o dos excluídos.

Falando da ética universal do ser humano, Freire é firme em colocar a exigência ética do trabalho docente, da qual não podemos escapar. Não se trata da ética do mercado, e sim da ética que condena o cinismo, a exploração, a perversão hipócrita da pureza em puritanismo, a discriminação da raça, do gênero, da classe, na atividade pedagógica e social. O melhor para lutar por ela é vivê-la. Em nossa prática, testemunhá-la (FREIRE, 1999:12). Como vemos a colocação originária é, em Paulo Freire, a dimensão vivencial da prática pedagógica como testemunho de uma ética universal e comprometida com a formação humana dos excluídos. Afirma o dever do preparo científico situado criticamente também nessa dimensão ética e sem dissociação de uma coisa com a outra.

A pratica educativa enquanto prática humana é absolutamente ética. A razão afetiva e fundamental de tais atitudes se enraíza na dimensão metafísica do ser humano. Segundo Freire trata-se da vocação ontológica para o “ser mais” e da sua natureza constituindo-se social e historicamente, como presença no mundo como algo original e singular, uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Este ser que Freire configura amorosa-mente traz as seguintes exigências para o educador:
É no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética se torna inevitável e sua transgressão possível, é um desvalor, jamais uma virtude (FREIRE, 1996:20).
Como presença consciente no mundo não podemos escapar à responsabilidade ética no nosso mover-se no mundo. Somos seres condicionados por fatores genéticos e sociais, mas não determinados. A ideologia neoliberal tem uma finalidade imobili-zadora do ser humano, neutralizadora de seu potencial político.


NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA.


A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática, porque Ensinar é criar a possibilidade da produção do conhecimento ou da sua construção. “Quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”. Não há docência sem discência. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

Ao desenvolver inicialmente esta idéia Paulo Freire permite compreender que o processo de conhecer como ato de aprender e de criar, se fundamenta na metafísica do inacabamento humano, mas que se realiza, integradamente e com um comprometimento ético, estético, afetivo, científico iterativo edcuador-educando.

Do ponto de vista metafísico a compreensão do homem e da mulher é de seres históricos e inacabados e sobre o qual se funda a compreensão do processo de conhecer. Quando nossa prática é ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, e ética em que a estética deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade. Quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve a “curiosidade epistemológica” pela qual alcançamos o conhecimento cabal do objeto (FREIRE, 1999:25-28).

Se ensinar exige rigorosidade metódica a exigência ética permeia toda a atividade educativa, por conseqüência a afetividade, ensinar dessa forma corresponde ao compromisso ético e afetivo com o educando como ser histórico que engendra um conhecimento.

1.2. Ensinar exige pesquisa e isso fala da concretude do gesto afetivo vivido como prática pedagógica. Não há ensino sem pesquisa e nem pesquisa sem ensino. Um está no corpo do outro. Freire nos coloca que pesquisamos para constatar, constatando, interviemos, intervindo educamos e nos educamos. Então, a ultrapassagem do senso comum exige uma atitude afetiva de respeito e qualificação da experiência do educando e o cuidado e desafio à sua capacidade criadora através da consciência crítica: “Pensar certo implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação. Implica o compromisso do educador com a consciência crítica do educando, cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente” (FREIRE, 1999:32-33).

1.3. Educar exige respeito aos saberes dos educandos. Respeito é uma dimensão do afeto. Em palavras mais simplificadas pensar certo exige respeito aos saberes com os quais os educandos chegam na escola e também discutir com eles a razão desses saberes em relação com o ensino de conteúdos. É valorizar e qualificar a experiência dos educandos e aproveitar para discutir os problemas sociais e ecológicos, a realidade concreta a que se deva associar a disciplina, estudar as implicações sociais nefastas do descaso dos mandantes, a ética de classe embutida nesse descaso (FREIRE, 1999:33-34).

1.4 Quando Ensinar exige criticidade o ingrediente que possibilita a passagem da ingenuidade para a criticidade e, portanto da conquista progressiva da humanização é a afetividade, a amorosidade pela qual o educador realiza este processo de estímulo e promoção da superação do educando através de suas próprias capacidades criativas. A criticidade, na visão biocêntrica ela existe à medida que entro em contato originário e profundo com a situação do outro. Em outras palavras a criticidade brota também do amor profundo que me mobiliza pelo outro e pela vida.

Para Freire entre a ingenuidade e a criticidade existe uma ruptura, uma superação. Quando nos aproximamos cada vez mais de forma rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. A curiosidade dos camponeses é a mesma curiosidade com a qual cientistas e filósofos admiram o mundo.
Cientistas e filósofos superam porem a ingenuidade do camponês tornando-se sistematicamente curiosos. Não haveria criticidade sem a curiosidade, historicamente construída e reconstruída. A prática educativo-progressista promove a passagem da ingenuidade para a criticidade, sem divinizar ou diabolizar a ciência (FREIRE, 1999:34-35).

15. Ensinar exige estética e ética.Estética e Ética emergem da mais profunda experiência afetiva com o outro. Sendo assim, a vivência afetiva, a raiz da ética e da estética é também a base estrutural do pensar certo, é a fonte nutridora da inteligência afetiva, como diz Rolando Toro. O conhecimento racional é diretamente ligado ao nosso instinto afetivo, às emoções e aos sentimentos de atração, empatia, etc. “Mas não há pensar certo à margem de princípios éticos” (FREIRE, 1999: 36).

O pensar certo implica compromisso com mudança da ingenuidade à criticidade. Comprometer-se é uma atitude afetiva que envolve o outro no processo de conscientização e de politização. Compromisso é coisa assumida com liberdade e não como obrigação. O que apela e se expressa em nós como uma exigência profunda é a mobilização irresistível pelo cuidado com o outro, com a vida do outro que desabrocha para o reconhecimento real do mundo. Trata-se do momento originário da ética, momento do face-a-face diante do oprimido, do alienado pela ideologia dominante, do dominado politicamente, do explorado economicamente.
16. Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo. “Pensar certo é fazer certo” (FREIRE, 1999: 38). Uma expressão popularizada diz que “as palavras comovem, mas o exemplo arrasta”. Paulo Freire sabe muito bem que as palavras que não ganham corpo são vazias, quase nada valem. A experiência, por outro lado, mostra muito bem que a mesma atitude em nível político se revela ineficaz. Quantos militantes políticos propalaram um discurso contundente e até agressivo contra tudo que significasse o fazer político das classes dominantes, porém, faltando engajamento no processo de mudança, ações de cuidado real com as necessidades fundamentais da população marginalizada, fica um rastro de desilusão por uma palavra encantadora, mas estéril por não estar acompanhada de um efetivo engajamento ético, pela mobilização afetiva profunda pela promoção e defesa dos direitos fundamentais da população. A formação do pensamento crítico, conscientizador e libertador não se realizam porque “não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o rediz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo, mas ao mesmo tempo perguntar ao aluno se ”sabe com quem está falando” (FREIRE, 1999: 38).

O discurso dissociado do professor, o discurso não engajado do militante é como um terreno que não tem nutrientes para germinar e crescer a vida, a mudança. E Paulo se refere diretamente à imersão do pensar certo no universo da afetividade como generosidade: “Faz parte do pensar certo o gozo da generosidade que, não negando a quem tem direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada” (FREIRE, 1999: 38). Ressalve-se que raiva tem aqui um sentido afetivo de indignação e raivosidade desenfreada seria uma dimensão patológica do afeto, a destrutividade (TORO:2002).

17. Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação. Essa abordagem está recheada das dimensões afetivas do comprometimento ético do professor com seus alunos. O pensar certo tem como próprio a disponibilidade ao risco. Assim como o útero fecundo, a dimensão dialogal de aceitação do novo é uma atitude nutritiva e afetiva, mais profundamente ativa que o falar. Sem esquecer que o velho que preserva sua validade, que encarna uma tradição ou marca presença no tempo, continua novo.
“A rejeição decidida a qualquer forma de discriminação” é outra explicitação da ética e do amor em Paulo Freire. A pessoa que tem uma mentalidade fatalista em relação aos acontecimentos devastadores, que a globalização está provocando, está numa atitude de impotência, falta-lhe a esperança que nasce da crença profunda na mudança possível nos pequenos gestos engajados, crença na capacidade política de pessoas conscientes participarem da descoberta de caminhos transformadores. A neutralização das pessoas interessa sobremaneira aos interesses neoliberais, ideologicamente articulados pela mídia e pelo mercado globalizado. Não há pensar certo sem entendimento, diz Paulo Freire, e não há entendimento sem ser uma construção co-participada. Aqui, novamente, entra o processo afetivo de qualificação do aluno pela valorização da sua experiência, dos seus conhecimentos. Na relação dialogal, também possível somente em nível afetivo, o conhecimento não deve ser pré-transmitido, mas construído conjuntamente (FREIRE, 1999: 38-9).

A valorização da Identidade de cada um, gesto nutritivo da expressão e desenvolvimento do aluno, passa pela negação da prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero as quais ofendem a substancialidade do ser humano e negam radicalmente a democracia. Nesta colocação, a explicitação da democracia passa justamente pela negação das patologias do afeto, pela qualificação incondicional do outro, e indica que a democracia consiste na valorização da Identidade, da diversidade, da alteridade de cada um.
Outra dimensão da afetividade é expressa ao defender que pensar e fazer certo tem a ver com a humildade. O afeto não é arrogante. Conhecimento científico acompanhado de arrogância não tem espaço para a humildade e comumente o outro é desvalorizado. Segundo Freire, o pensar certo e o fazer certo são integrados e ocorrendo ao mesmo tempo, sem dissociações. É um ato concomitante. Não há pensar sem entendimento e o entendimento é co-participado. Todo entendimento implica comunicabilidade, a não ser que esteja articulado ideologicamente. A tarefa coerente do pensador que pensa certo é desafiar o educando com quem se comunica para que produza sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação, que não se funde na dialogicidade. O pensar certo é dialógico e não polêmico (FREIRE, 1999: 41-42). Reiteramos aqui que o diálogo é uma das dimensões mais fundamentais do processo educativo biocêntrico, centrado sobre a afetividade.

18. Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. Quero dize aqui da importância de destacar que o fundamento da crítica também é a afetividade, uma vez que o pensamento crítico é o pensamento que nasce do contato profundo e vivencial com a realidade, especialmente do outro como outro. Pensar crítico tem uma exigência ética de pensar com coerência e de forma dialógica fundamentada.
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. [...] É fundamental que na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro de poder, mas pelo contrário, o pensar certo, que supera o ingênuo, tem que ser pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. [...] Por isso o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática.(FREIRE, 1999: 43).
Quanto mais assumo como estou sendo mais me torno capaz de mudar, de promover-me do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica, diz Freire. A curiosidade fundamenta ambos os pensamentos. A condição para a mudança é a abordagem crítica do pensamento ingênuo. Isso implica no engajamento generoso do professor que facilita o processo do aluno. E o autor não esquece que um elemento essencial na assunção do aluno para o pensamento crítico é o emocional.
Esta errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência, um papel altamente formador (FREIRE, 1999:45).
Esta raiva se caracteriza afetivamente como indignação, como aquela do Cristo expulsando os vendilhões do templo. Como falamos acima esta raiva é uma dimensão afetiva saudável, necessária na mobilização política da pessoa. Neste momento fica explícita a larga referência que Freire faz às dimensões afetivas do processo educativo e politizador.

1.9. Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural. Reconhecer a qualidade do outro é um ato afetivo de qualificação e de promoção. Facilitar o crescimento, da mesma forma é um serviço de amor e de dedicação. Para permitir e facilitar um processo de formação do educando é necessário esta mobilização afetiva sem a qual este processo não acontece. A capacidade de amar é o fundamento do processo de assumir e de assumir-se:
Um dos papéis mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e de todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar (FREIRE, 199:46)
Assumir é cuidar, cuidar é amar. Assumir é responsabilidade e respeito e não obrigação. “A assunção de nós mesmos não significa a exclusão do outro. A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na perspectiva educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem a ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos” (FREIRE, 199:47). O respeito é um gesto afetivo que corresponde ao cuidado, ao permitir, ao reconhecer. O processo de assunção experimenta o conflito de forças na experiência histórica, política, cultural e social dos homens e mulheres que pretendem detê-la.

Reafirmando a dimensão afetiva Freire nos coloca:
A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado.
Às vezes mal se imagina o que pode passar a representar um simples gesto de um professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo (FREIRE, 199:47)
Para Freire pode tratar-se daqueles pequenos gestos, palavras e olhares de respeito e de qualificação do professor com seu aluno adolescente. “Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre o que teríamos que refletir seriamente” (FREIRE, 1999: 48). Fala-se quase exclusivamente do ensino de conteúdos como transferência de saber. Isso vem de uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. Foi socialmente aprendendo que homens e mulheres descobriram que é possível ensinar. Isso atribui a importância às experiências informais da rua, do recreio, em que variados gestos se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços. Imagine-se a significação do “discurso” formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço (FREIRE, 1999:49).

É de grande importância, ao buscarmos uma fundamentação acadêmica e científica da afetividade, no processo educativo, encontrar em um educador como Paulo Freire a identificação do pensamento pedagógico biocêntrico, expresso nas suas palavras abaixo:
O que importa na formação docente é a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando a coragem (FREIRE, 1999:50).
Além do exercício do potencial humano da criatividade, da promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica é fundamental “o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou da adivinhação” (FREIRE, 199:51). No desenvolvimento do pensamento sobre a afetividade como base do conhecimento a Educação Biocêntrica trabalha com o mesmo pressuposto, engendrando também a categoria da Inteligência Afetiva.
QUANDO FREIRE FALA QUE ENSINAR NÃO É TRANSMITIR CONHECIMENTO.
A obra de Teoria Biocêntrica da Educação de Dorli Signor “O Concebido”, lembra insistentemente que ensinar não é transmitir conhecimento, da mesma e reiterada forma que o faz Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia. Ensinar como transmissão de conhecimento significa que há um conhecimento pronto, acabado e que a tarefa do educando é simplesmente absorver e memorizar.
Contudo Freire e Dorli colocam, em primeiro lugar, a consciência do inacabamento do conhecimento porque ele corresponde a um processo dialético, analético e vivo da vida em permanente movimento e transformação criativa. Por outro lado, ensinar exige o reconhecimento do ser condicionado historicamente e também por potenciais genéticos inseridos em nosso corpo. Mais radicalmente, ensinar exige respeito à autonomia do educando no seu processo de construção do conhecimento e na construção de sua vida. Por isso o bom senso deve estar sempre desperto e permitindo o movimento de fluidez, de percepção às armadilhas ideológicas das falas e das atitudes incoerentes. Em respeito à autonomia e ao processo do educando, o professor não precisa da arrogância por saber e sim de humildade de ser inconcluso e que a verdade se desvela no seu processo. Essa atitude de humildade significa a espera tolerante do movimento do educando. O professor situado num campo de participação ativa deve ser o exemplo primeiro da luta em defesa dos seus direitos, sendo este testemunho a fonte de mobilização educativa dos seus alunos. Para ensinar é preciso apreender a realidade e incrementar o processo educativo de alegria e de esperança, convicto de que a mudança é possível e realizada em cada ato seu, despertando cada vez mais a curiosidade do educando de um nível de ingenuidade para um nível crítico epistemológico.

De que forma a afetividade perpassa esse processo vivo e engajado de construção do conhecimento?

2.1. Ensinar exige consciência de incabamento. O pressuposto aqui é o inacabamento do ser humano. O inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. A frase lapidar é que “onde existe vida, há incabamento”. Na visão biocêntrica se compreende que a vida é um permanente movimento criativo e transformador, evolutivo. Por conseqüência a verdade é um permanente revelar-se. Nunca o conhecimento está acabado. Assim como nós podemos evoluir ao infinito no desenvolvimento dos nossos potenciais (toro), da mesma forma, o acesso à verdade será sempre um processo vivo, inacabado, em um caminhar peregrino ao encontro da verdade, do saber.

Paulo Freire destaca que o inacabamento se tornou consciente nos homens e nas mulheres, por isso a experiência muda de qualidade em relação à dos animais. Quanto mais se vinculou a relação entre mente e mãos o suporte (ambiente) foi se tornando mundo e a vida se tornando existência. Isso na proporção que o corpo humano se torna corpo consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não “espaço” vazio a ser cheio de conteúdos (FREIRE, 1999:56).

A invenção da existência envolve a linguagem, a cultura, a comunicação a níveis mais profundos e complexos, a “espiritualização” do mundo, a possibilidade de embelezar ou de enfear o mundo, tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos.
capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornaram éticos são capazes de romperem com a ética (FREIRE, 1999:57).
Quando os homens passaram a dar nomes às coisas que faziam, já não foi mais possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, decidir, de lutar, de fazer política. Isso traz a imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E isso tudo traz de novo a radicalidade da esperança. E então Freire afirma o seu gosto de ser homem, de ser gente, porque sabe que sua passagem pelo mundo não é predertiminada, preestabelecida. Que seu destino é um alvo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não pode fugir. Por isso insiste na problematização do futuro e recusa sua inexorabilidade.
Entendemos que assim se reafirma o compromisso ético, por isso afetivo de engajamento no mundo por ser ele inacabado e em permanente processo.
2.2. Ensinar exige o reconhecimento de ser condicionado diz Freire, afirmando que consciente do seu inacabamento o homem sabe que pode ir para além dele. É uma diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. “Gosto de ser gente porque percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais”. A consciência disso implica na impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Na ausência renuncio à minha responsabilidade ética, histórica, política, social; renuncio a cumprir minha missão ontológica de intervir no mundo (FREIRE, 1999:59-60).

Sabendo-se presença engajada no mundo, como lutador e sujeito da história Freire afirma:
Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais, políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam (FREIRE, 1999:60).
Comentando o seu apelo para a conscientização que assumira na década de 60, Freire reafirma que a conscientização é exigência humana, caminho para por em prática a curiosidade epistemológica. A conscientização é natural ao ser que inacabado se sabe inacabado. “A inconclusão, repito, faz parte da natureza do fenômeno vital” (FREIRE, 1999:61). A inconclusão implica necessariamente a inserção no permanente processo social. E aí a curiosidade se torna fundante da produção do conhecimento. É também conhecimento e não só expressão dele.
O inacabamento nos faz responsáveis, daí a eticidade de nossa presença no mundo. Eticidade, que não há dúvida, podemos trair. A capacitação de homens e mulheres em torno de saberes instrumentais jamais pode prescindir de sua formação ética. “A radicalidade desta exigência é tal que não deveríamos necessitar sequer de insistir na formação ética do ser ao falar de sua preparação técnica e científica” (FREIRE, 1999:62). O educador que ensinando castra a curiosidade tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica. Então, a partir do fundamento de que somos inacabados surge a exigência da educação como um processo de desenvolvimento do educando, motivado pela curiosidade e a necessidade de conhecer. Sem esse conhecimento, base de sua conscientização não há liberdade. Assim percebemos novamente, inserida no processo educativo a necessidade do cuidado amoroso, afetivo e solidário do educando.

Então para Freire estar no mundo, para homens e mulheres é estar com o mundo e com os outros. É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Homens e mulheres se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. A consciência de sua inconclusão os tornou educáveis. É na inconclusão, que nos inserta no movimento permanente de procura, que alicerça a esperança. “Sou esperançoso por exigência ontológica” (FREIRE, 1999:64). “O ideal é que na nossa experiência educativa, educandos, educadores e educadoras, juntos “convivam” de tal maneira com este, como com outros saberes de que falarei que eles vão virando sabedoria” (FREIRE, 1999:65).

2.3. Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando.Outro saber necessário à prática educativa, e que se funda no inacabamento, é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do educando: jovem, criança, adulto. O inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez éticos, diz Freire. A afetividade como respeito à autonomia e à dignidade emerge de uma exigência radical constituída no relacionamento com o aluno, no encontro com o educando. Diz Freire: “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético, e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente, por ser ético, podemos desrespeitar a rigorosidade da ética” (FREIRE, 1999:66).

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